Substâncias psicodélicas como o próximo passo para a saúde mental
Bem-Estar

Substâncias psicodélicas como o próximo passo para a saúde mental

por Danielle Sanches

foto: Alex Batista

Cogumelos mágicos, MDMA, ayahuasca: a promessa é que substâncias psicodélicas revolucionem o tratamento da depressão e outros transtornos mentais 

O ano era 1943 e a Europa ainda vivia à sombra da Segunda Guerra Mundial. Na Suíça, o químico Albert Hofmann desenvolvia uma pesquisa importante para a medicina: encontrar uma substância que ajudasse a controlar hemorragias especialmente após o parto. Ao conseguir formular o medicamento, o cientista acidentalmente a colocou em contato com a pele, provocando alucinações. Quando deduziu o que havia ocorrido, decidiu ingerir o que considerava uma microdose (250 microgramas, uma quantidade considerada alta hoje) de forma consciente. O efeito foi tão forte que ele precisou voltar para casa para se recuperar. 

Essa foi a primeira aparição do que ficaria conhecido como LSD, a sigla em alemão para dietilamida do ácido lisérgico, uma das substâncias alucinógenas mais conhecidas no mundo todo e que, inicialmente, se tornou muito pesquisada por médicos e psiquiatras que tentavam simular a experiência dos esquizofrênicos para entender melhor a doença de seus pacientes. 

No entanto, a associação das substâncias psicodélicas com o uso recreativo de pessoas dos movimentos de contracultura dos anos 1960, especialmente nos Estados Unidos (que vivia uma verdadeira batalha de narrativas conservadoras e libertárias durante a Guerra Fria) acabou criando uma demonização por parte do establishment da época –levando o LSD e outras substâncias com efeito semelhante para a ilegalidade e, assim, encerrando os estudos científicos e o potencial terapêutico delas. 

Mais de meio século depois de serem colocadas na marginalidade, os psicodélicos voltam a receber os holofotes científicos. Dessa vez, os estudos se concentram nas propriedades para tratar doenças importantes na nossa sociedade atual, como depressão, ansiedade, estresse pós-traumático e dependência química em pacientes que não respondem aos tratamentos e medicamentos convencionais. 

Muito além do LSD 
O universo das substâncias psicodélicas – ou alucinógenas – vai muito além do LSD. “Existem centenas de substâncias alucinógenas conhecidas atualmente”, explica Rafael Guimarães dos Santos, professor e orientador no Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. 

Santos, que é pós-doutorando do Programa de Pós-Graduação em Saúde Mental da FMRP, lidera hoje um estudo para analisar os efeitos da ayahuasca para abuso de álcool entre universitários. Utilizada há séculos por populações indígenas na Amazônia e há muitos anos por cultos religiosos nacionais como Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha, a ayahuasca é uma bebida preparada com folhas de duas plantas amazônicas: a chacrona (Psychotria viridis) e um cipó chamado de jagube ou mariri (Banisteriopsis caapi). Os efeitos alucinógenos são provocados pela DMT (dimetiltriptamina), encontrada nas folhas da chacrona. 

Há ainda outras substâncias bastante conhecidas e que estão sendo analisadas em estudos científicos, como a psilocibina, obtida a partir de alguns tipos de cogumelos mágicos e que vem apresentando bons resultados no tratamento da depressão; e a ibogaína, composto originário da planta africana Tabernanthe iboga e que será usada em um estudo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP para o controle do vício em crack. A ibogaína também fará parte de outra pesquisa, feita pela USP de Ribeirão Preto e coordenado por Santos, para auxiliar no controle da dependência em álcool. Há ainda estudos sendo feitos com o MDMA para o tratamento de estresse pós-traumático. Nos EUA, o FDA, agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, vem flexibilizando as regras de uso e a expectativa é que o MDMA seja o primeiro psicodélico aprovado para o tratamento de doenças mentais no país. 

Tantos estudos conduzidos por aqui têm razão de ser: o Brasil é hoje um dos países com maior produção de pesquisas em substâncias alucinógenas no mundo, com grupos de estudo importantes em universidades como a UFRN (no Rio Grande do Norte), a UFBA (na Bahia) e a UFRJ (no Rio de Janeiro, em parceria com o IDOR – Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino), além dos núcleos em São Paulo. O próprio Santos foi listado, recentemente, como um dos maiores pesquisadores de alucinógenos do mundo pelo portal Expertscape, que classifica pesquisadores com base em sua produção científica.

Como os psicodélicos atuam?
De maneira geral, as substâncias alucinógenas ou psicodélicas aumentam a atividade cerebral ao se ligarem aos receptores da serotonina – um neurotransmissor importante para a regulação do humor e do apetite nos seres humanos. A serotonina também tem um papel importante na plasticidade cerebral, auxiliando na criação de novas conexões neurais dentro do cérebro. 

Por isso, é comum encontrar a descrição de experimentar visões e outras experiências surreais com o uso dessas substâncias – a chamada “viagem”. “É uma experiência pontual que vai ajudar o indivíduo a ressignificar seus pensamentos e auxiliar a sair da depressão”, explica Lívia Goto Silva, pós-doutoranda do IDOR, que trabalha com análises envolvendo a DMT. 

Embora todos os detalhes ainda não sejam conhecidos pela ciência, ao que tudo indica, a experiência com substâncias psicodélicas provoca uma espécie de dissociação do ego – como é chamada a nossa consciência — e “apaga” esse centro de comando de forma momentânea. “A ação dos psicodélicos desvia o foco do auto centrismo e tira a pessoa do estado de ruminação, muito comum em quem sofre de depressão e tem pensamentos recorrentes sobre suicídio, por exemplo”, explica Silva, que também estuda como os efeitos sobre a plasticidade cerebral podem ajudar a combater a degeneração neural e ajudar a tratar doenças como Alzheimer. 

A grande vantagem com relação aos antidepressivos é que, enquanto os medicamentos costumam levar semanas para fazer efeito (tempo que, em muitos casos, é crucial, em casos de ideação suicida, por exemplo) e aumentar a disponibilidade de serotonina no organismo, o uso de substâncias psicodélicas produz benéficos de forma rápida e com poucas doses.

Mas vale aqui uma grande ressalva: embora os resultados dos estudos envolvendo psicodélicos sejam promissores, nenhuma das substâncias está liberada para uso médico em qualquer parte do mundo. “São compostos experimentais, que vem sendo estudadas por possíveis benefícios, mas os estudos ainda são preliminares”, alerta Rafael dos Santos. “Com a ayahuasca, por exemplo, o uso para fins terapêuticos é liberado apenas dentro do contexto religioso, que já é praticado há muitos anos de forma tradicional”, explica. 

E, se eventualmente, alguma dessas substâncias for liberada para fins terapêuticos, o uso passa longe das experiências daquelas que temos na imaginação, com hippies e pessoas alegres usando de forma recreacional. “O mais provável é que o uso feito em ambiente controlado, como um hospital, tenha mais benefícios do que em um ambiente caótico e sem foco, que pode estimular uma experiência ansiosa e até traumática”, acredita Santos.

Por isso, a ideia da terapia precisa levar em conta o chamado set (como a pessoa se sente) e o setting (o ambiente e o contexto da experiência). “Isso pode incluir uma sessão de preparo para a vivência e uma sessão depois, que vai ajudar a ressignificar aquilo”, explica Silva. Não à toa, em rituais religiosos que utilizam psicodélicos, é comum ter um “guia” que orienta a experiência enquanto os efeitos da droga atuam no corpo. 

E, embora a história não tenha registrado, a atuação das mulheres como guias dos cientistas que testavam em si as substâncias foi fundamental para que as pesquisas com essas substâncias avançassem. “As vozes femininas foram ocultadas nas narrativas oficiais sobre a ciência psicodélica”, acredita Bia Labate, diretora do Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinais, na Califórnia. “Elas tiveram um papel pioneiro apoiando pesquisadores, ajudando no processo de preparação, tomando notas e discutindo achados com seus esposos, mas nunca foram co-autoras oficiais das pesquisas”, afirma. 

O que esperar para o futuro? 
Na série “9 Perfect Strangers” (Amazon Prime), Nicole Kidman vive uma espécie de terapeuta-curandeira moderna e recebe em seu retiro espiritual alguns convidados em busca da cura para seus problemas e traumas emocionais. A polêmica mora justamente no tratamento: Masha, como é chamada a personagem, coloca microdoses de psilocibina nos smoothies servidos de café da manhã, levando os hóspedes a experimentarem os efeitos alucinógenos da substância sem preparo ou conhecimento prévio. 

Tanto a série como a cobertura que o tema vem recebendo da mídia nos últimos meses tem levado as pessoas a acreditarem que esses tratamentos logo estarão disponíveis nas prateleiras de farmácias ou em retiros. “É mais um caso de mistificação dos psicodélicos”, acredita Clancy Cavnar, integrante do conselho administrativo do Instituto Chacruna. “A série é totalmente irreal, quem fornece substâncias alucinantes deve ter treinamento em saúde mental para isso”, opina. 

Para Rafael dos Santos, mesmo com todos os estudos sendo feitos com substâncias alucinógenas, ainda é muito cedo para saber o que elas podem de fato fazer pela saúde mental do ser humano. O especialista acredita que a psilocibina possa ser aprovada nos próximos dez anos se os resultados de estudos em fase 3 – quando já estão sendo feitos testes em humanos em diversas partes do mundo – forem satisfatórios no tratamento para a depressão. Ou seja, nada de automedicação. O importante é deixar o preconceito de lado, acompanhar e apoiar centros de pesquisas que estão abrindo as portas.

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